Recorrentemente tenho sido
acometido de leves surtos de melancolia. Não no sentido triste da palavra, mas
no aspecto saudosista da coisa. Nestes momentos de devaneio, sempre que volto à
Potilândia, e volto quase que todos os dias, ocorre a lembrança e a observação,
já expressas em texto que inadvertidamente se perdeu em algum HD formatado, de
que as ruas da infância mesmo estando todas no mesmo lugar e tendo já algumas
novas onde antes não havia nada senão mato, passaram por transformações que
demonstram a mudança do poder aquisitivo, da idade de seus moradores, da
tranquilidade que privilegiava seus habitantes e das árvores que sombreavam e
refrescavam os dias, não raros, quentes da cidade do sol.
O fato é que o ritmo da vida
na cidade está muito mais acelerado. Não percebo mais, nas ruas do bairro, os
bandos de meninos andando pelas ruas e explorando os jambeiros, cajueiros,
pitombeiras, castanholas, cocos e azeitonas pretas do bairro. Brincando de
jogar “biloca”, de polícia e ladrão, de “tica”, soltando pipas, “caçando
lagartixas” pelos terrenos baldios ou jogando mirim, “cruzamento”, cascudinho,
rebatida, gol de dentro, brincando de peia quente, sarrafo ou garrafão. Se
ainda existem estes jogos e brincadeiras eu não sei. Não vejo mais acontecendo
como e tanto quanto antes. E era sadio. Raramente alguém brigava, muitas vezes
alguém se machucava, arrancava um “chaboque” do dedão ou se queimava na urtiga.
Tudo normal. Mesmo nas brincadeiras mais “pesadas” o clima não era tenso.
Hoje, acredito, além do
fator tecnológico, entrou em cena o fator violência urbana. Não dá mais, mesmo
se a criança estiver equipada com o localizador (celular), para ficar solta na
rua, brincando à vontade porque há verdadeiramente o risco de se tornar vítima
de alguma maluquice ou atrocidade típica da vida urbana contemporânea. O próprio celular (objeto desejado desde
muito, muito cedo nos dias de hoje) se converte de “instrumento de controle,
tranquilidade e localização” admitido por pais um tanto neuróticos, em objeto
de consumo do bandido. Veja que contradição interessante. Àquilo que deveria
servir para dar a sensação de controle e segurança aos pais acaba se
transmutando em objeto de cobiça e motivação da ação delinquente.
Potilândia em particular
deixou, com o passar de alguns anos, não muitos, mas alguns, de ser um lugar
sossegado. Quando por lá cheguei, em 1982 era um bairro afastado, com grande
número de terrenos baldios, vizinho do Campus da UFRN e de Nova Descoberta. Não
existiam edifícios em seu entorno, nenhum mesmo, e existiam campos de areia
usados pela molecada e árvores, muitas árvores. As mesmas que foram citadas no
segundo parágrafo, que além de proporcionarem o alimento e o lanche da tarde e
às vezes da noite, permitiam o justo refresco sob suas sombras. Era comum que
as pessoas cuidassem das árvores, quase que uma por casa nas ruas do SESC e
usufruíssem das suas sombras nos finais de semana e finais de tarde. Talvez a
possibilidade de ir avançando por “lanço”, de sombra em sombra pelas calçadas,
somado é claro a todos os demais e inúmeros elementos que se transformaram com
o tempo, contribuísse para uma perspectiva mais tranquila de se encarar o dia a
dia.
O bairro hoje, que não é nem
bairro é conjunto, tem poucas, pouquíssimas árvores. As ruas que anteriormente
tinham quase uma árvore por casa não tem, muitas vezes, nenhuma árvore que
seja. Foram todas derrubadas em nome da expansão da área construída ou para não
ter o trabalho de limpar as folhas. O calor por consequência lógica e direta só
aumenta. Aumenta pela ausência das sombras das árvores. Aumenta pelo aumento
das áreas asfaltadas. Aumenta pela maior quantidade de carros circulando e
poluentes sendo lançados na atmosfera. Aumenta com o crescimento do buraco na
camada de ozônio, com a verticalização da cidade, com o crescimento da
indústria e com o derramamento de sangue, prática crescente e frequente nas
terras potiguares.
O resultado de tudo isso, de
todo esse aquecimento da temperatura ambiente e da aceleração do ritmo de vida
é, entendo, uma significativa perda na qualidade de vida. Vivemos mais
apressados, mais preocupados, mais conectados, mais automatizados e perdemos o
tempo de devanear. Perdemos o tempo de ouvir o silêncio, de observar a
natureza, de sentir a brisa à sombra das árvores afinal, nem existem mais as
árvores. Além de tudo, de todas as mazelas e atribulações da vida moderna,
temos hoje, em Potilândia e nos outros conjuntos residenciais com semelhantes
características, a possibilidade de literalmente, cozinhar o cérebro nos
deslocamentos necessários ao cumprimento das tarefas cotidianas. Cozinhamos o
juízo permanentemente em nossos deslocamentos em nome da modernidade, do
conforto, do menor trabalho e da clausura doméstica. Saímos das ruas, que hoje
são insalubres e hostis, nos prendemos em casa, conectados ao mundo via
internet e cozinhamos os cérebros se não pelo sol causticante das ruas sem
sombras, pela radiação dos celulares, tablets, fones de ouvido e outras fontes
portáteis de energia e comunicação.
Rodrigo Maribondo
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